Entre o inglês e o jazz: a primeira que vez que traduzi Miles Davis
- Marcelo Orozco
- 16 de jun.
- 4 min de leitura
Atualizado: 17 de jun.

Foto: Kraft74/Shutterstock.com
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Tive uma breve temporada de tradutor de livros em 2006 e 2007 que, quem sabe, será retomada algum dia. E meu batismo de fogo foi com um monstro sagrado do jazz, Miles Davis.
Não foi minha primeira tradução a ser publicada, mas foi a primeira feita. A oportunidade apareceu quando Patricia De Cia, com quem eu era casado na época, recebeu da independente Editora Barracuda a oferta de traduzir Kind of Blue: The Making of the Miles Davis Masterpiece, do americano Ashley Kahn.
Como eu já tinha comprado e lido o livro havia algum tempo, decidimos tocar a tarefa a quatro mãos. Os dois se revezavam na tradução e na revisão e sintonia fina de termos musicais e linguagem do jazz.
Calouro ainda, descobri logo de cara que ler um livro em inglês é uma coisa, traduzi-lo palavra por palavra, frase por frase, expressão por expressão é outra.
Ao apenas ler, você até avança em partes nas quais não sabe o significado exato de uma palavra ou desconhece uma expressão popular, desde que entenda o sentido geral. Você pode até ter a curiosidade de ir consultar um dicionário, mas não é isso que vai fazer sua leitura empacar.
"Como traduzir aquilo de maneira a manter o sentido? “Surf-ass” ficou martelando na minha cabeça por alguns dia"
— Marcelo Orozco
Ao traduzir, não há perdão. Nada de pular palavra ou frase. Travou em alguma coisa por alguns momentos? Corra atrás do significado.
Topou com uma frase cheia de gírias dos jazzistas dos anos 1950? Procure aquele dicionário de gírias em inglês que você baixou há um tempinho porque agora ele finalmente será útil.
Como Ashley Kahn teve acesso às fitas master originais das duas sessões de gravação que produziram o álbum Kind of Blue em 1959, há a reprodução de vários diálogos dentro do estúdio. Também há vários nomes técnicos de escalas musicais e termos como “vamp” para se referir à condução de uma música.
Já tinha ciência da existência da escala modal, mas a explicação detalhada de Kahn me ajudou a compreender melhor do que se trata.
Quanto aos diálogos e descrições do ambiente feitas por participantes das sessões, servem para botar o leitor “dentro” do estúdio. E fazem perceber que, entre colegas, Miles Davis era mais descontraído e solidário do que sua imagem pública de mal-humorado intratável.
Uma dessas conversas de estúdio foi a maior pegadinha que enfrentei na tradução. Em certo momento, um daqueles banquinhos altos do estúdio é arrastado por alguém que continua sentado nele. Isso produz um ruído alarmante.
Em meio ao susto e às risadas, o sax alto Cannonball Adderley brinca que aquilo foi um “surf-ass sound”, fazendo trocadilho entre “surface” e “ass”, já que o barulho se devia a alguém não ter tirado a bunda do banquinho para arrastá-lo.
Como traduzir aquilo de maneira a manter o sentido? “Surf-ass” ficou martelando na minha cabeça por alguns dias, mesmo enquanto eu e minha parceira avançávamos na tradução.
Até que veio o estalo de traduzir “It’s a surf-ass sound” por “É um som que abunda”. Valia mais o sentido do trocadilho que o literal das palavras. Foi feita a devida nota de rodapé explicando o raciocínio.
De qualquer forma, mesmo a missão de traduzir não impediu a apreciação dos momentos mágicos das cinco músicas que formam o álbum Kind of Blue, descritas com bom gosto por Kahn.
Outra parte que me fascinou foi a comparação que o pianista Bill Evans fez no texto de contracapa entre Kind of Blue à uma arte japonesa em que o pintor é obrigado a ser espontâneo, usando uma técnica delicada e minimalista para pintar em papel finíssimo de arroz, sempre correndo risco de furar a tela. Kahn ampliou a descrição dessa arte no livro.
E assim ficou pronto Kind Of Blue: A História da Obra-Prima de Miles Davis, publicado em 2007. Quase na sequência, traduzi outro livro de Ashley Kahn nos mesmos moldes, com a história das gravações de A Love Supreme, de John Coltrane.
Outro ótimo livro, embora a dedicação fervorosa e a disciplina quase religiosa de Coltrane implique em menos momentos de descontração em estúdio que Kind of Blue.
Quase emplaquei nas livrarias uma terceira tradução de Kahn com o livro The House That Trane Built: The Story of Impulse Records. Fiz o trabalho e fui pago por ele, mas a Editora Barracuda encerrou suas atividades antes de publicar a obra.
Há um epílogo curioso para o livro Kind of Blue. Um tempo depois do lançamento, atendi a um pedido da editora e fui parar no programa Todo Seu, então apresentado pelo cantor Ronnie Von na TV Gazeta de São Paulo.
Era uma situação meio bizarra aparecer na TV falando de um livro do qual você não foi o autor, apenas o tradutor. Mas é claro que a conversa não ficou em cima de como traduzi o livro e sim em torno de Miles Davis, como ele foi genial etc.
Ronnie Von mostrou-se um entusiasta do jazz. No ar, foi bem simpático e o papo transcorreu bem. Mas eu jamais imaginaria antes que participaria do programa dele, muito menos que fosse para conversar sobre Miles Davis.
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