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Adrian Younge mostra que o jazz está mais vivo do que nunca

Adrian Younge / Foto: divulgação
Adrian Younge / Foto: divulgação

O jazz não está morto e, curiosamente, um dos artistas mais empenhados em manter o gênero vivo é justamente Adrian Younge – sujeito que tem um selo/projeto batizado de Jazz is Dead (JID). O catálogo ostenta 24 títulos lançados desde 2020 e, entre eles, estão álbuns de alguns dos principais jazzistas estadunidenses vivos: o pianista Doug Carn (77 anos), o saxofonista Gary Bartz (84), a cantora Jean Carn (78), o baixista Henry Franklin (84), o duo formado pelo trombonista Phil Ranelin (86) e o saxofonista e clarinetista Wendell Harrison (82), e o pianista Lonnie Liston Smith (84).


Todos eles lançaram obras seminais no começo dos anos 70 e representam uma linguagem herdeira tanto do hard bop como do spiritual jazz que floresceram na década anterior. Younge e seu parceiro no Jazz is Dead, o também multi-instrumentista e produtor Ali Shaheed Muhammad (integrante de um dos grupos de rap mais importantes da história, o A Tribe Called Quest), lançam luz sobre a vitalidade desses artistas – menos conhecidos do que os gigantes do bebop, do cool e do hard bop – e fomentam uma produção contemporânea comprometida com a estética de 50 anos atrás. Escutá-los é necessário.


O tempo já levou para o outro plano a maioria dos revolucionários consagrados do jazz. O pianista Herbie Hancock (85 anos), o baixista Ron Carter (88) e o saxofonista Sonny Rollins (94) são três dos que ainda resistem bravamente. Os músicos contemplados pelo JID, no entanto, não desfrutam do mesmo reconhecimento e são também verdadeiros heróis do gênero.


Franklin e o casal Carn gravaram pelo selo Black Jazz, gravadora gerida por negros que lançou 20 álbuns entre 1971 e 1975. Ranelin e Harrison eram sócios do selo Tribe Records, com oito títulos lançados entre 1973 e 1976. Bartz ganhou destaque como integrante da banda de Miles Davis e fez história no spiritual jazz com os álbuns Harlem Bush Music: Taifa (1970) e Harlem Bush Music: Uhuru (1971). As teclas de Smith oferecem um colorido essencial para o som do saxofonista Pharoah Sanders do começo dos anos 70 e cintilam ainda mais nos seis álbuns do pianista lançados pelo selo Flying Dutchman entre 1973 e 1976.


Younge e Muhammad gravaram com esses artistas com equipamento totalmente analógico e, assim, conseguiram captar uma atmosfera das gravações seminais deles nos anos 70. A textura e a temperatura são diferentes. Enquanto navega pela atmosfera, o som deixa uma brisa saudosista no ar. “Não uso computadores. Gravo como se gravava na minha era favorita da música, nos anos 60 e começo dos 70”, diz Younge à Jazzify, apontando orgulhosamente, pela câmera da chamada de vídeo, para todo o aparato técnico amontoado em seu estúdio em Los Angeles. “A maioria dos discos que eu ouço foram lançados entre 1968 e 1974.”


Adrian Younge / Foto: divulgação
Adrian Younge / Foto: divulgação

O músico explica que essa obsessão pelo período o afasta de acompanhar com maior atenção a cena contemporânea de jazz. “Para ser honesto, eu realmente não ouço muita música moderna. Os discos antigos que ainda não conheço soam como música nova para mim”, diz. “Amo o Kamasi Washington, Terrace Martin, Robert Glasper, o pianista brasileiro Amaro Freitas... Amo todos esses caras, mas eu não sento para ouvir a música deles tanto quanto eu ouço os discos antigos do Ramsey Lewis. Adoro ver os artistas novos no palco, mas não ouço muito os discos deles porque estou ocupado ouvindo discos antigos.”


Esse foco na audição orienta também o gosto pessoal do artista em relação à música brasileira e africana. Paralelamente às gravações com os jazzistas estadunidenses, o Jazz is Dead registrou também novos trabalhos com dois arquitetos do afrobeat (o baterista nigeriano Tony Allen e o guitarrista ganês Ebo Taylor) e com cinco nomes importantes do Brasil: Marcos Valle, Azymuth, João Donato, Hyldon e Dom Salvador.


“Em 2019, estive em São Paulo com a minha banda Midnight Hour no Nublu Jazz Festival e descobri uma cultura única. Me conectei espiritualmente com a cidade naquela viagem”, lembra, esforçando-se durante toda a entrevista em construir frases inteiras em português. “Depois disso, me dediquei profundamente a aprender mais sobre música brasileira e começamos a gravar com esses artistas. Eu amo tanto a cultura brasileira que decidi aprender a sua língua. A conexão é realmente muito profunda para mim.”


O artista, inclusive, se arrisca a escrever e cantar em português nos dois últimos álbuns solo que lançou: Linear Labs: São Paulo (2024) e Something About April III (2025). “São Paulo me inspirou mais do que qualquer outro lugar do mundo nos últimos cinco anos, por isso coloquei o nome da cidade em um dos meus álbuns recentes”, diz. “E Something About April III é o primeiro álbum que fiz inteiramente em português. A ideia era fazer um disco brasileiro de soul psicodélico, que poderia ter sido lançado em 1972 ou 1973, sobre um casal negro em São Paulo com dificuldades de viver seu amor.”


Na semana seguinte à entrevista à Jazzify, o selo lançou o álbum Samantha e Adrian (parceria do estadunidense com a brasileira Samantha Schmütz, mais conhecida pelo trabalho como atriz e comediante) e “Bloco da Harmonia” – o primeiro single do próximo álbum de Carlos Dafé. “Ele é muito especial, mas muitas pessoas ainda não o conhecem – inclusive no Brasil. Eu quis fazer um álbum com ele tipo o do Arthur Verocai ou da banda Black Rio, com elementos de psicodelia”, explica. “Ele é o príncipe do soul. Para mim, a voz dele é muito melhor hoje do que nos anos 70. Você sente a alma dele na voz. Nunca imaginei que gravaria com ele.”


“Esse nome é provocativo. Ele gera reflexões e, quando as pessoas escutam os nossos discos, entendem que o jazz não está morto"

Adrian Younge, sobre o projeto Jazz is Dead


Younge vibra por já ter gravado com três dos principais artistas associados ao movimento Black Rio – além de Dafé, o soulman Hyldon e o pianista Dom Salvador. “A contribuição deles para a música negra no Brasil é muito profunda. Nos discos que gravamos com eles, tentei estabelecer uma conexão com a soul music estadunidense dos anos 70”, diz. “Para mim, são duas histórias muito parecidas que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes: o movimento Black Rio e a cena de soul estadunidense engajada à luta pelos direitos civis.”


De fato, a mensagem do orgulho negro é algo comum às duas manifestações e o movimento Black Rio sempre foi assumidamente influenciado pela soul music de artistas como Isaac Hayes e Marvin Gaye. Essa conexão diaspórica, obviamente, reverbera também na África. O afrobeat difundido por Tony Allen e Ebo Taylor se ergueu impregnado das referências que o fenômeno da música negra estadunidense espalhou por todo o continente. “Tudo vem de África. O funk e o samba vieram de lá e depois voltaram como influência. Os africanos são influenciados pela música brasileira, se inspiram em James Brown. Tudo se conecta: Black Rio, afrobeat, soul dos EUA...”, compara.


Formado pelo hip hop e colaborador de artistas do gênero como o grupo Wu-Tang Clan e o rapper Snoop Dogg, Younge reconhece que seu ouvido foi treinado para gostar da música dos anos 60 e 70 por causa dos samples de rap. “Eu conheci ‘Na Boca do Sol’ (Arthur Verocai) por causa do rap”, diz, referindo-se à música que foi sampleada pelos rappers Ludacris e MF Doom. “Eu aprendi sobre os discos que amo porque o hip hop me ensinou. É uma música que conecta o passado e o presente através dos samples.”


De certa forma, portanto, o jazz está vivo também porque o rap se abasteceu da sua influência para se tornar um fenômeno da indústria fonográfica das últimas décadas. Mas a vitalidade do gênero se sustenta principalmente na renovação por intermédio de artistas como os já citados por Younge (Kamasi Washington, Robert Glasper, Terrace Martin e Amaro Freitas) e no legado dos pioneiros (vivos ou mortos). Entre os que ainda estão na ativa, alguns nunca se apresentaram no Brasil – casos de Doug Carn, Jean Carn, Wendell Harrison, Phil Ranelin e Henry Franklin.


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“Seria legal levá-los para se apresentar no Brasil. Porém, para ser honesto com você, o Jazz is Dead tem muita notoriedade no mundo todo, mas não ganhamos muito dinheiro. Tudo o que nós fazemos é realmente por paixão. Não somos ricos. Todo dinheiro que a gente ganha com um projeto, nós investimos na experiência seguinte”, explica. “Quando organizamos turnês com artistas como esses, isso nos custa caro. Nós pagamos tudo, gostamos do que fazemos e adoramos que essas lendas percebam o quão especiais elas são em todos os lugares do mundo. Nós adoraríamos levá-los ao Brasil, mas precisamos saber se haverá pessoas suficientes para pagar pelos ingressos.”


Em 2025, o JID promoveu shows de Ebo Taylor no Brasil. O artista, atualmente com 89 anos, infelizmente não conseguiu se apresentar por problemas decorrentes de sua saúde. Sua banda, no entanto, manteve as apresentações e fez a alegria de quem teve a oportunidade de assistir. Jazzify aposta que não seria diferente com o casal Doug e Jean Carn ou com o duo Wendell Harrison e Phil Ranelin. São shows com a cara do festival Sesc Jazz, por exemplo.


O jazz não está morto, é bom lembrar. Adrian Younge sabe muito bem disso. “Esse nome é provocativo. Ele gera reflexões e, quando as pessoas escutam os nossos discos, entendem que o jazz não está morto. Nosso trabalho é conectar passado e presente e fazê-lo com espírito, força, fervor e atitude”, justifica. “A música precisa estimular o pensamento e acho que é isso que estamos fazendo com esse nome: estimulando o pensamento, nada mais do que isso.”

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