O jazz não foi inventado, ele escapou pelas ruas de New Orleans
- Vinicius Mesquita

- 25 de set.
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O Estado da Louisiana, onde está localizada a cidade de New Orleans, foi colonizado inicialmente por espanhóis e franceses, e só em 1803 passou a integrar os Estados Unidos. Filhos dessa colonização latina, os primeiros negros de New Orleans não foram totalmente despojados de sua cultura, do vodu nem de suas crenças religiosas. Diferentemente dos protestantes ingleses — obcecados por suas próprias doutrinas —, os católicos espanhóis e franceses não se preocuparam demais em cristianizar seus escravizados.
Além dos costumes herdados de brancos e negros, New Orleans abrigava também os hábitos dos creoles livres, educados na tradição europeia da música clássica. Um dos nomes mais importantes desse grupo foi o pianista Ferdinand “Jelly Roll” Morton (1890–1941), mestre do ragtime, que suavizava o vigor daquela música sincopada com balanço sutil e pitadas de blues. Algo semelhante fazia Luckey Roberts, outro pianista de rag que influenciaria os grandes nomes do jazz nos anos seguintes, como James P. Johnson e Fats Waller.
Em 1897, nascia também o bairro da boemia e da prostituição de New Orleans: Storyville. Com 38 quarteirões cheios de casas de espetáculo e clubes noturnos, o distrito alimentava o ambiente perfeito para a música que emergia da fusão entre blues e ragtime. Sendo uma cidade portuária e festiva, New Orleans parecia ter sido feita para aquilo. E mesmo que soe exagerado dizer que o jazz nasceu ali, é seguro afirmar: nenhum outro lugar dos EUA viu o estilo florescer com tanta força.
Entre as figuras lendárias que emergiram desse caldeirão estava Buddy Bolden (1877–1931), cornetista criado nas favelas da cidade, onde convivia com cerimônias de vodu em Congo Square e as canções de igreja. Fascinado pelas marchas militares — tão presentes nos funerais e no carnaval — e pelo blues, Bolden reuniu uma banda barulhenta e original. Ao lado de trombone, clarinete, violão, baixo e bateria, ele marchava pelas ruas desafiando outras bandas em confrontos musicais — uma tradição local parecida com os desafios de repentistas no Brasil. Diz a lenda que seu som era tão potente que podia ser ouvido a quilômetros, e bastava uma nota para que as pessoas largassem tudo e corressem para vê-lo tocar.
Bolden virou personagem central no mito da criação do jazz. Contava-se que muitos músicos de sua banda — os chamados “embromadores” — não sabiam ler música. Quando esqueciam um trecho do ragtime ou da marcha, improvisavam por desespero. Assim, sem querer, inauguravam o improviso coletivo — desorganizado, sim, mas o suficiente para abrir uma trilha nova e dar início à transformação da música popular americana.
Entre os que se encantaram com o som de Bolden estava um menino pobre chamado Louis Armstrong (1901–1971). Nascido no meio da miséria, filho de uma das mulheres que frequentavam as casas de Storyville, Armstrong cresceu cercado de música e logo se apaixonou por aquela sonoridade vibrante. Quando tinha sete anos, viu Bolden sucumbir à loucura e ser internado num hospício. Mas o impacto já estava feito: o jazz estava pronto para eclodir — só que agora, longe daquela New Orleans que começava a se tornar mais moralista e menos noturna.
Com o fechamento de Storyville em 1917, o ragtime entrou em decadência. A popularização da vitrola tirou o espaço dos pianistas de salão. Já o blues, esse foi plenamente assimilado pelos músicos negros da cidade. Suas notas dissonantes invadiram os instrumentos e as vozes de figuras como o cego Lemon Jefferson, Gertrude "Ma" Rainey e Bessie Smith. E Armstrong, aos 17 anos, já tocava trompete como ninguém.

Naquela época, Joe “King” Oliver (1885–1938), sucessor de Bolden, liderava bandas respeitadas e dominava o solo escrito. O improviso ainda era um recurso emergencial — usado apenas para tapar falhas de memória. Os “breaks” improvisados eram curtos, geralmente durando menos de um compasso.
Armstrong mudou tudo isso. Genial, veloz no raciocínio, começou a inserir solos improvisados de verdade quando integrou a banda de Oliver — a Creole Jazz Band — em Chicago, novo centro musical dos negros deslocados de New Orleans. Era mais talentoso que seu mentor, e logo formou seu próprio grupo, onde podia comandar a música à sua maneira. Entre 1925 e 1928, gravou obras-primas com os conjuntos Hot Five e Hot Seven — marcos na história do jazz e do disco.
O cérebro de Armstrong era como um motor de melodias límpidas, criadas sobre temas pré-definidos com a naturalidade de quem sorri quando está feliz. Ao compor no ar, mostrou que regras demais sufocam a inspiração dos mais brilhantes.
Como a arte dos anos 1920 — de Pablo Picasso a James Joyce, de Hemingway ao cinema mudo —, o jazz também se voltou ao individualismo, ao solo, ao improviso. A expressão coletiva cedeu espaço para vozes únicas, como a de Armstrong e do clarinetista e saxofonista Sidney Bechet (1897–1959), músico talentoso e temperamental que encontrou na Europa o espaço que não teve nos Estados Unidos.
Bechet era tão criativo quanto Armstrong. Improvisava com facilidade, ignorava partituras quando não lhe serviam, e fez do saxofone — ainda visto como um instrumento carnavalesco — algo sério. Aos 22 anos, encantou a Inglaterra ao tocar sax soprano no Palácio de Buckingham. Carismático, impaciente, Bechet nunca teve o mesmo apelo popular que Armstrong, mas deixou um legado inegável: foi ele quem criou um novo vocabulário para o saxofone.











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