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Documentário retrata lado humano de jazzistas consagrados

Atualizado: 24 de jun.


O trompetista Don Cherry / crédito: Paul Bergen/Getty Images
O trompetista Don Cherry / crédito: Paul Bergen/Getty Images

Dexter Gordon foi um dos saxofonistas mais importantes do jazz dos anos 50 e 60, instrumentista fundamental na transição do bebop para o hard bop, um dos primeiros homens negros a ser indicado ao Oscar de Melhor Ator (por seu papel no filme Round Midnight, de 1986) – e foi um pai ausente. Don Cherry se consagrou como um dos protagonistas do gênero free jazz, participou de álbuns importantes do saxofonista Ornette Coleman (como o seminal The Shape of Jazz to Come, de 1959), foi um dos trompetistas mais influentes do jazz – e foi um pai ausente. Quincy Jones é reconhecido como um dos produtores mais versáteis da história da música, assinou arranjos para ninguém menos que Frank Sinatra, produziu o álbum mais vendido de todos os tempos (Thriller, do Michael Jackson, de 1982) – e foi um pai ausente.


O filme Legacy, que está na programação do festival de documentários musicais In-Edit Brasil 2025, se debruça sobre um período específico da trajetória desses e outros instrumentistas de jazz que migraram dos Estados Unidos para países da Escandinávia nos anos 50 e 60. Eles se mudaram para a Europa à procura de melhores condições de trabalho e na esperança de encontrar um ambiente menos racista. Uma vez lá, se envolveram com amores e fizeram filhos – que são as principais vozes do longa-metragem dirigido pela cineasta sueca Manal Masri. O documentário está entre os 17 títulos do panorama mundial do festival, que acontece de 11 a 22 de junho em São Paulo. É o único filme internacional desta edição que foca no jazz.


Para os fãs do gênero, são valiosas as cenas em que vemos verdadeiros heróis da música em momentos cotidianos na condição de imigrantes: Dexter Gordon pedalando pelos gramados de Copenhague (Dinamarca) ou Don Cherry fazendo um som com apitos em meio a uma floresta de Tårgap (Suécia). O espectador brasileiro mais atento vai notar a presença do percussionista pernambucano Naná Vasconcelos junto a Cherry em uma das imagens de arquivo que registra o trompetista em perambulações pela cidade sueca – os dois gravaram juntos em alguns álbuns, como o antológico Organic Music Society (de 1972), o espiritual Om Shanti Om (gravado em 1976, mas só lançado em 2020) e a trilogia Codona (com títulos lançados entre 1979 e 1983).


Além dessas preciosas imagens de arquivo, o filme cativa por trazer humanidade aos personagens e expor suas fragilidades. São tocantes muitos dos depoimentos dos filhos que falam abertamente sobre ausência, admiração, identificação e os conflitos decorrentes de serem frutos de relações inter-raciais.


“Meu pai era um artista. Foi assim que escolheu viver. O saxofone era a sua esposa, era a sua criança, era o seu mundo. Sua vocação na Terra era fazer música tendo o jazz como linguagem. Nas palavras dele, era a sua vida”, diz o produtor executivo e filho de Dexter Gordon, Mikael Gordon Solfors, logo no começo do documentário. “Mas a verdade é que ele nunca assumiu a total responsabilidade pelos filhos que criou. Acho que eu nunca falei a ele o que tive de passar. Por outro lado, nós o amávamos loucamente pela pessoa vibrante, carismática e fantástica que ele era. Quinze minutos com meu pai me sustentavam por dois anos.”


O depoimento de Eagle-Eye Cherry, músico e filho de Don Cherry, não é menos comovente. “O que você amava no meu pai era também o que você odiava. Ele era muito espontâneo, como se você estivesse com um adolescente”, conta. “Em nossa relação, às vezes eu era mais pai para ele do que ele para mim.”


Ao privilegiar a perspectiva dos filhos e de algumas ex-companheiras dos artistas, o filme lança um olhar afetivo sobre alguns dos criadores mais instigantes do jazz. Em pouco mais de uma hora, aborda questões complexas das mais diversas que gravitam em torno da obra musical: êxodo, vício em drogas, racismo, a natureza nômade da vida artística e ausência paterna. São tópicos que podem passar despercebidos para quem é admirador desses músicos, mas foram determinantes na vida de seus familiares.


Legacy só derrapa onde menos se poderia esperar. A trilha sonora original, assinada pelos suecos Daniel Kadawatha e Daniel Stenmarck, destoa da beleza suprema de joias como “Desireless” (Don Cherry) e “Our Love Is Here to Stay” (Dexter Gordon). O bem-aproveitado tesouro das imagens de arquivo e a perspectiva original do longa-metragem, no entanto, garantem emoção e deleite para o espectador – sobretudo, o fã de jazz.


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