Blues do guitarrista Marcos Ottaviano vence as cobranças da tradição
- Julio Maria

- 18 de jun.
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Atualizado: 2 de jul.

São poucos os artistas capazes de encontrar o ‘veio de ouro’ em trabalhos feitos sob o peso da tradição. Tradições pesam toneladas e podem se tornar amarras difíceis de serem rompidas em nome de alguma inovação. Por exigirem veneração ancestral e culto ao passado, podem travar quem cria e tornar tudo reincidente, repetitivo, acomodado, simplista. Gêneros como o blues e o jazz, então, quando visitados por brasileiros, são submetidos a dois filtros perigosamente interligados: a tradição e o território. Se os próprios músicos norte-americanos discutem o esgotamento de suas formas, como os estrangeiros a eles podem soar autênticos?
O blues encontrado pelo guitarrista Marcos Ottaviano rompe as barreiras psicológicas da tradição por assumir-se sem intenções disruptivas nem egóicas, mas de forma lapidar. Ottaviano investe em um blues que não quer recriar a roda. O que ele faz é apurá-lo em notas e depurá-lo em grupo. Estudioso e professor ao mesmo tempo, autor de métodos referenciais sobre guitarra blues, ele deixa transparecer no álbum o que o move desde 1990, quando fundou o grupo Companhia Paulista de Blues, ou nos treze anos em que construiu, ao lado do baterista e vocalista Junior Moreno e do baixista Andrei Ivanovic, a trajetória do maior trio de blues brasileiro, o Blue Jeans.
Seu álbum é a fotografia de um instante curioso. Depois de fazer discos centrados em temas instrumentais autorais, como o ótimo Marcos Ottaviano e Kiko Moura Project, de 2010, e também Blood, Sweat & Electric, de 2013, ele volta com Marcos Ottaviano And His Blues Band: Celebrando 35 anos de Carreira. São temas cantados pelo vocalista e gaitista Vasco Faé, que tem longa história no blues brasileiro como integrante do Irmandade do Blues. O teclado é de André Freitas, o baixo de David Rangel, a bateria de Humberto Zigler e a segunda guitarra de Marcelo Ottaviano, filho de Marcos. Há ali uma opção celebrativa, descompromissada de material inédito, com temas autorais lançados em outros discos e revisitações a blues clássicos.
"When The Music Stops" é uma delícia irresistível, composta por Ottaviano em parceria com André Christovam e tocada desde os anos de Blue Jeans. Aliás, foi lançada no disco Come Back Home, de 2003. Era feita em slide, o que a tornava mais leve e folk. Agora, tem mais pressão e mais sedução na voz de Faé. Uma das melhores faixas do álbum. A sequência vem com a faixa "Trouble in Mind", um blues cortante, lento e doloroso, mas já chamado pelos historiadores do blues como “a esperança para o futuro, mesmo nos tempos mais sombrios". Tudo por conta de seus versos iniciais, cantados agora por Faé: “Problema na mente, estou triste / Mas não estarei triste para sempre / Porque sei que o sol vai brilhar na minha porta dos fundos algum dia.” Centenas de artistas do blues e do jazz a gravaram das formas mais variadas, como Nina Simone, Freddie King, Janis Joplin e até a soberana, Ella Fitzgerald.
As predileções de Ottaviano, e é curioso saber por elas de que barro sai sua identidade musical, seguem com "Got To Move", um shuffle poderoso de Elmore James também reinvestigado em mil gravações, de Fleetwood Mac a Sonny Boy Williamson. E a ainda mais acelerada "Georgia Women", do furioso R.L. Burnside. Sobre essa, o grupo mantém o galope ferroviário da gravação original e a deixa crescer na base de apenas um acorde, com timbres distorcidos de gaita e guitarra com solos em slide. São os blues mais difíceis de serem tocados, por desafiarem seus intérpretes a criar um discurso sobre o mínimo que uma harmonia pode ter. Muitos os evitam por isso. Ottaviano e seus músicos seguram tudo nas alturas e incendeiam o que Burnside propôs. John Lee Hooker, que só não respeitaria o tempo quadrado da regravação, amaria.
Depois de "Come Back Home", um blues em tom menor, próximo ao soul, uma parceria de Ottaviano com Junior Moreno, "Lowell Fusion" é lembrado na regravação de "Three O’Clock Blues" talvez para mencionar seu maior intérprete, B.B. King, que a gravou em 1951. Ottaviano tem em B.B. mais que um ídolo e uma referência nas pesquisas de solo que faz. Depois de abrir com o Blue Jeans alguns shows que o bluesman fez no Brasil, em 2004, o grupo foi convidado pelo próprio B.B. a subir ao palco do Tom Brasil para encerrar a noite. Ao final do show, King disse: “Minha missão está cumprida porque existe, no mundo, uma banda como a Blue Jeans representando o blues tão bem.” Há uma história por trás de cada blues do álbum.
Ottaviano não joga notas fora nem usa recursos impressionistas. Vai às melodias mesmo dentro de improvisos, criando músicas dentro de outras músicas. "Ain’t Got You", que Clapton gravou com os Yardbirds, em 1964, antes de deixar o grupo por discordar do redirecionamento mais pop que a banda faria a partir de então, evoca o ídolo inglês que sempre apontou para a importância de se ter critério melódico. Tudo dos Yardbirds está lá. O riff, a intenção da voz, a levada, os timbres. É pura veneração — e é sobre ela que a sonoridade do guitarrista brasileiro soa verdadeira. Com a última, "Rock Me" (que muitos grafam como "Rock Me Baby" e que é conhecida como o blues mais gravado da história, mais até do que "Hoochie Coochie Man"), Marcos Ottaviano e seu grupo encerram um álbum que eles mereciam ter.
Marcos Ottaviano And His Blues Band: Celebrando 35 anos de Carreira
Marcos Ottaviano
Independente
Nota 10











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