Álbum do Música de Montagem prova que é possível ser pop e sofisticado
- Julio Maria

- 25 de ago.
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Existe uma ideia de que a MPB paulistana seja mais cerebral. Identificar o que é música paulistana já é um risco, mas ela existe e nem sempre foi feita por pessoas que nasceram em São Paulo: Tom Zé, um baiano de Irará, adota um pensamento crítico do homem na metrópole ao chegar a São Paulo e se torna, assim, expoente de uma típica MPB paulistana. Arrigo Barnabé, paranaense, vê poesia crítica na industrialização dos finais dos anos 70, quando já está em São Paulo, e cria sua beleza no caos de Clara Crocodilo. Itamar Assumpção, paulista crescido paranaense, encontra na neurose de São Paulo uma casa para suas angústias e faz o também genial Beleléu, Leléu, Eu, em 1980.
A lista de criadores que assumiram uma linguagem oposta aos regionalismos terrenos (os que saem da terra, não do asfalto) é fértil a partir dessa São Paulo dos anos 80. Já havia histórico para isso. Assim como a bossa nova não existiria sem o Rio de Janeiro e Dorival Caymmi seria menor sem a Bahia, sem São Paulo não haveria a Tropicália. Quinze anos depois dela, Ná Ozzetti, Paulo Tatit e todo o Grupo Rumo, Premê, Arrigo, Itamar e Língua de Trapo viram-se falando um mesmo idioma que batizaram Vanguarda Paulistana. Com o tempo um dilema, que nunca foi deles, mas de quem pensava sobre eles, se impôs: como ser crítico, livre e, ao mesmo tempo, abrangente? Ou mais: como ser vanguarda sem tornar-se um expoente datado da era das vanguardas?
O grupo Música de Montagem, do compositor, instrumentista e professor Sérgio Molina, sai das mesmas origens urbanas, mas caminha em direção a algumas saídas interessantes para esse conflito entre a sofisticação formal e o registro da popularidade. O projeto leva o nome de seu livro, lançado em 2018, sobre a era das montagens musicais de estúdio iniciada pelos Beatles com o álbum Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, de 1967.
O álbum que lança agora, RUA, um tanto mais do que o anterior, de 2018, é influenciado pela linguagem da genial turma de 1980 sem fazer culto gratuito ao cult. Sete músicas autorais, todas assinadas por Molina e parceiros, atuam nas duas frentes: a das surpresas de absorção rápida e a das reflexões de duração longa. É para sentir e pensar, na superfície ou em profundidade. Quem canta agora é Xofan, grande intérprete com voz cheia de brilho. Molina toca piano, teclado, violão processado e canta; a baixista segue sendo Clara Bastos; a baterista é Priscila Brigante e a guitarra é de Vitor Ishida. Há também reforços das vozes de Aninha Ferrini, Melina Molina e Klaus.

Existe uma situação factual na qual algumas letras foram feitas, a das incertezas vividas durante a pandemia. Mas isso não toma o álbum de sequestro temporal porque, se ninguém disser, tudo será redimensionado para o que viveremos em qualquer instante de nossas vidas. A canção que abre o disco, o rock PSIU!, de Molina com Kleber Albuquerque, diz: “Silêncio é o grito do escuro / Silêncio é o ouvido de luto / Silêncio é uma forma de insulto / Silêncio é o som do futuro.” Melhor ainda é o que vem a seguir, dito sobre guitarras distorcidas: “Silêncio é o som do astuto, silêncio é a resposta do burro.”
Escuta, fruto de uma criação coletiva de Molina, Marcelo Segreto, Juçara Marçal, Clara Bastos, Priscila Brigante, Rômulo Alexis e Gustavo Lenza, tem a voz de Juçara e um belo arranjo dramático. “Escuta aqui, escuta ali, escuta”, pede o primeiro verso. E nos desafia: “O grito da nuvem no céu / O choro da chuva no chão / O canto do vento, a toada do tempo / O lamento do meu violão.”
Sentido, de Molina com Lilian Jacoto, aponta para outro rumo. Ela fala de amor e tristeza com progressões harmônicas comoventes e inusuais, sem se distanciar do que nasceu para ser, pop. Afinal, ninguém proibiu ninguém de falar de amor. A sequência é feita com uma espécie de música irmã, Elegia, também feita com Lilian. Aqui, os dias sem futuro, ou o futuro sem dias, são incômodos, mas suaves no piano de Molina: “E se de repente a gente pudesse acordar / Desse delírio que é viver sem amanhã / Haverá tempo, tempo pra sonhar outra vez?”
A canção título, RUA, de Molina, Albuquerque e Segreto, muda tudo de novo, colocando pressão, peso e uma linha de baixo de Clara que se sobrepõe e, sozinha, poderia fazer o que a letra nos diz: sair de casa “agora que a noite apavora e os gritos lá fora devoram a lua”. O álbum fecha com a belíssima Espelho, de Molina e Segreto, jovem compositor talentoso e influenciado por Tom Zé na orientação de seu grupo Filarmônica de Pasárgada. Seu jogo de esfria e esquenta, adoça e amarga, aterroriza e acalma é de uma beleza mahleriana. Ou seja, profunda e pop, complexa e emocionante, paulistana e universal.
RUA
Música de Montagem
Nota: 9











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