We Insist! – O manifesto sonoro de Max Roach que uniu jazz e direitos civis
- Alexandre Duarte
- há 4 dias
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A cidade de Montgomery é a capital do estado do Alabama, no sul dos Estados Unidos. Seu passado é marcado por ocupar um lugar central na Guerra Civil norte-americana, quando o Norte lutou contra o Sul pelo fim da escravidão. A cidade sulista era a capital dos Estados Confederados da América, união de sete estados que queriam manter o regime que escravizava milhares de africanos e seus descendentes. Foi também a capital da derrota que, de muitas maneiras, impôs uma humilhação aos sulistas — ressentimento que, em grande parte, perdura até hoje, frequentemente direcionado e sinalizado pelo racismo.
O sistema de transporte público em Montgomery surgiu entre a virada do século 19 e o início do século 20 e, desde o princípio, foi legalmente segregado por raça. Na década de 1950, a cidade tinha cerca de 100 mil habitantes e, passados mais de 50 anos, os ônibus continuavam seguindo regras que definiam quem era cidadão de primeira categoria e quem era de segunda.
Rosa Louise McCauley não havia nascido em Montgomery. Era de Tuskegee, outra pequena cidade do Alabama. Cresceu em uma fazenda e estudou até precisar abandonar a escola para trabalhar como costureira. Quando seus pais se separaram, mudou-se para Montgomery.
A NAACP (National Association for the Advancement of Colored People) havia sido fundada em 1905 por um grupo de ativistas. Inicialmente conhecida como The Call, mudou de nome em 1910 com o objetivo de lutar pelos direitos civis da população negra dos Estados Unidos, principalmente combatendo as leis Jim Crow, que impunham rígidas regras de segregação. Um de seus integrantes era Raymond Parks, morador de Montgomery, que se casou, em 1932, com Rosa Louise McCauley — desde então conhecida como Rosa Parks.
No final da tarde de 1º de dezembro de 1955, Rosa pegou um ônibus na Cleveland Avenue e se sentou em um dos bancos disponíveis. Após três paradas, o veículo ficou cheio. Cerca de três passageiros brancos estavam de pé. Como era costume, o motorista, James F. Blake, moveu o marcador que definia a divisão entre passageiros negros e brancos para a área onde Rosa estava sentada, sinalizando “coloured”. Isso significava que, daquele assento para trás, todos os passageiros negros deveriam se levantar para que os brancos se sentassem. Mesmo com alguns lugares vagos, os homens negros que estavam sentados se levantaram. Rosa, porém, se negou. Moveu-se para o lado, ficando no banco da janela, mas permaneceu sentada.
A atitude levou o motorista a chamar a polícia, que prendeu a passageira por violar um artigo da lei municipal de segregação. No dia seguinte, após o pagamento da fiança pela NAACP, Rosa deixou a cadeia. Sua recusa foi uma afirmação de cidadania: queria ser reconhecida como qualquer outro cidadão norte-americano. A luta pelos direitos civis ganhava, assim, um poderoso símbolo — e era uma mulher negra.
Desde seu princípio, o jazz captou as tensões sociais e raciais do terreno em que nasceu. Ainda que nem sempre a batalha fosse claramente perceptível, a chegada de informações sobre outras realidades, o surgimento de grandes líderes, a crescente conscientização da população marginalizada e o ingresso de músicos cada vez mais politizados nas fileiras jazzísticas fizeram com que a música refletisse o zeitgeist da época.
Maxwell Lemuel Roach vivia longe do Sul segregado. Nascido na Carolina do Norte, mudou-se cedo com a família para o Brooklyn, em Nova York. Criado em uma comunidade onde a igreja era alicerce, teve na mãe, cantora gospel, sua primeira influência. Aos 10 anos já tocava bateria em grupos religiosos. Longe da realidade de linchamentos — embora o racismo também fosse presente —, o jovem baterista pôde contar com algum apoio para desenvolver habilidades que seriam revolucionárias no instrumento, já sob o nome de Max Roach.

Aos 18 anos, no início dos anos 1940, Max começou a frequentar os clubes de jazz da cidade, que vivia a ebulição do movimento que revolucionaria o gênero. Em 1943, fez sua primeira gravação com o saxofonista Coleman Hawkins, então a principal referência do instrumento, até o surgimento de Charlie Parker, com quem logo dividiria o palco. Estava ao lado da primeira grande geração consciente da história do jazz, que nos daria o bebop.
O jazz já havia revolucionado sua linguagem diversas vezes, mas o surgimento do bebop com Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk e, outro baterista, Kenny Clarke, trouxe à música um significado político inédito. Max Roach cresceu nesse ambiente, em que o jazz se tornava música de protesto — sem letras, mas com um som radical como nunca antes.
O bebop elevou o jazz a um patamar de complexidade técnica, rítmica e harmônica que parecia carregar uma mensagem de desafio. Primeiro, o recado de que músicos brancos não seriam capazes de reproduzir aquilo com facilidade, invertendo a narrativa de superioridade racial. Segundo, a atitude no palco: no lugar do sorriso largo de Louis Armstrong e das coreografias das big bands, surgiam músicos sisudos, pouco preocupados em agradar.
Esse cenário de autonomia e afirmação política levou Max Roach a se tornar um dos mais inovadores músicos de sua geração e da história do jazz. No início dos anos 1950, ao lado de Charles Mingus, fundou a Debut Records, tornando-se um dos primeiros artistas a ter seu próprio selo. Mais tarde, expandiu as possibilidades do hard bop e da bateria, formando um quinteto clássico com o trompetista Clifford Brown — morto tragicamente, aos 25 anos, em um acidente de carro junto com o pianista Richie Powell, irmão de Bud Powell. Roach superou o trauma e manteve sua trajetória, chegando à obra-prima We Insist! – Freedom Now Suite, lançada em 1960.
O protesto silencioso de Rosa Parks havia catalisado o movimento pelos direitos civis, inspirando também ações como os sit-ins, em que jovens negros ocupavam espaços “reservados” para brancos em lanchonetes e eram treinados para suportar agressões sem reagir. O movimento se espalhou por mais de 50 cidades de nove estados, forçando mudanças em alguns estabelecimentos.
We Insist! começou a ser concebido em 1959, inspirado não só pelo movimento nos EUA, mas também pelas lutas contra o apartheid na África do Sul. Roach e o letrista Oscar Brown Jr. pretendiam lançar a obra apenas em 1963, no centenário da Proclamação da Emancipação, mas a urgência do momento os fez adiantar o projeto.
Gravado em agosto e setembro de 1960 e lançado em dezembro pelo selo Candid, o álbum traz na capa uma cena inspirada nos sit-ins: três homens negros sentados em um balcão de lanchonete, sendo servidos por um homem branco. A imagem causou polêmica e fez algumas lojas se recusarem a vender o disco.
Musicalmente, o álbum foi o primeiro de Roach a ter vocais na maior parte das faixas, com destaque para Abbey Lincoln, então sua esposa, e participação de nomes como Coleman Hawkins, Booker Little, Julian Priester e o percussionista nigeriano Babatunde Olatunji. As faixas abordam desde o passado escravocrata, como em “Driva Man”, até a unidade africana, em “All Africa”, e o massacre de Sharpeville, em “Tears for Johannesburg”. A visceral “Triptych: Prayer/Protest/Peace” é uma das interpretações mais intensas já registradas por Abbey.
Sonoramente, marca a transição de Roach do hard bop para uma abordagem mais vanguardista, que o acompanharia até seus experimentos posteriores com a orquestra percussiva M’Boom e o double quartet.
No caso de We Insist!, capa e conteúdo funcionam como um só: um manifesto musical que, mais de seis décadas depois, continua tão atual e necessário quanto no dia em que foi lançado.
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