Jazz na Serra transforma Santo Antônio do Pinhal em capital da música instrumental
- Alexandre Duarte
- 29 de ago.
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Santo Antônio do Pinhal é um município idílico que fica na parte paulista da Serra da Mantiqueira, entre a pujante São José dos Campos e a badalada Campos do Jordão. É uma cidade de pouco mais de 7 mil habitantes, de fácil locomoção, já que quase tudo o que interessa está concentrado em duas ruas que a cortam: uma que vem, outra que vai. Charmosa, ela não possui a industrialização de uma de suas vizinhas, nem o luxo da outra, mas tem algo que nenhuma das duas tem: jazz.
A cidade foi palco do Festival Jazz na Serra, realizado entre os dias 22 e 24 de agosto. Em sua terceira edição, dividido em dois palcos com cerca de 500 metros de distância na mesma rua, uma enxurrada de fãs do gênero circulou pelas praças e ruas para acompanhar 11 apresentações de artistas e bandas que mostraram um interessante e variado panorama do que se faz dentro do gênero no Brasil — com suas vertentes instrumentais ou não, e com algumas características únicas que o jazz ganhou ao se cruzar com a música brasileira.
Mais do que provar que existe jazz no Brasil, o festival também demonstrou a importância de se investir em cultura para economias locais e de como é fundamental o apoio do Estado, em todas as suas esferas, para levar movimento às cidades que vivem do turismo. Dados sobre o retorno desse tipo de investimento provam que os detratores só têm razão na matemática terraplanista. O valor de R$ 1 investido em cultura chega a ter um impacto que pode ultrapassar os R$ 6, segundo estudo da FGV.
Durante os três dias, Santo Antônio do Pinhal recebeu cerca de 12 mil turistas. Pousadas e hotéis tiveram mais de 90% de ocupação, restaurantes ficaram disputados e muitos lojistas saíram satisfeitos com a movimentação. Acima de tudo, vale destacar a boa infraestrutura local para receber esse tipo de evento.
Apesar do grande público, em nenhum momento os palcos se mostraram desconfortáveis, e foram montados em locais estratégicos. O Palco Boulevard ficou ao lado de um complexo de pequenas lojas e restaurantes, de onde se impõe uma torre de tijolos. Já o Palco Artesão era de dar inveja a qualquer megapalco de grandes festivais: ao redor, uma moldura de verde natural crescia no morro atrás da estrutura que recebeu os shows.
Foi nesse palco que se iniciou e terminou o festival. Na noite de sexta-feira, o Regional Ginga Ligeira se apresentou abrindo o evento. O grupo traz em seu trabalho a essência da música instrumental brasileira, o choro, incorporando instrumentos pouco comuns ao gênero, como o trombone. Seu som foi ideal para abrir um festival que se propõe a apresentar um jazz tipicamente brasileiro.
O segundo show da primeira noite foi a bela apresentação do guitarrista Thiago Espírito Santo e seu grupo. Com uma banda afinadíssima, o guitarrista mostrou por que é um dos melhores do país. Seu jazz pode ser chamado de brasileiro sem deixar dúvidas. Inspirado, ele apresenta uma música instrumental que bebe em diferentes fontes, indo dos grandes nomes das seis cordas da história do jazz a gêneros como o baião. Também se destacou em seu show o uso de vozes como instrumentos, compondo uma sonoridade que dá uma característica mais lírica à sua música.

Encerrado o show, o público se dispersou pela cidade e o recado foi dado: o festival tinha qualidade em sua organização e em sua curadoria. Escolhidas por Joabe Reis, ele mesmo músico responsável pelo Dejavu Session (que se apresentou no sábado), as atrações deram um panorama diverso do que é, mais do que o jazz, a música instrumental brasileira hoje em dia. A dificuldade de se escolher atrações para um festival que valoriza mais a qualidade do que a quantidade também foi superada com sucesso. “Fico feliz pelo feedback positivo, porque é muito difícil ser curador em um festival de música. Como instrumentista, já trabalhei e estive ao lado de tantos nomes da música que eu amo e gostaria que tivessem aqui nesses palcos. Mas a gente tem que fazer uma curadoria que tenha a ver também com o roteiro que a gente quer escrever aqui nesse festival”, diz Joabe.
A diversidade estava além dos palcos, como se viu no dia seguinte no público. Entre fãs de jazz, gente da cidade, turistas variados, crianças e muitos pets, ficou provada a capacidade que eventos desse tipo têm de agradar tanto convertidos quanto iniciantes. Entre entusiastas vestindo camisetas de Miles Davis e um golden retriever batizado em homenagem ao trompetista, também circulavam pinhalenses receptivos aos visitantes e à experiência.
No sábado, funcionando em dois palcos, mas nunca simultaneamente, a organização dos shows permitiu que fosse possível ver todos. Vale destacar também a pontualidade dos shows, um sinal de respeito dos músicos com o público. A programação teve início no espaço do Palco Boulevard com a Orleans Street Jazz Band, formação que remete às origens do gênero, entre as bandas marciais e de funerais do início do século XX em New Orleans. A banda tocou circulando pela cidade, transformando as calçadas de Pinhal em verdadeiro palco.
Demonstrando a evolução do gênero, numa viagem de quase 100 anos em poucos minutos, foi a vez do ótimo Sintia Piccin Sexteto subir ao palco. Moderno, englobando do post-bop ao jazz funk e ao spiritual jazz, a saxofonista ocupou lugar central à frente de uma banda potente. Um sexteto sem medo de explorar as linguagens do jazz e com ótimos solistas, foi uma das grandes surpresas do festival.
No outro palco, a dupla Salomão Soares & Vanessa Moreno embalou o pôr do sol com uma apresentação intimista e afinada. Voz e teclados em sincronia perfeita, com versões surpreendentes tanto de clássicos da música brasileira quanto do pop nacional repaginado, como a linda versão de “Meu Mundo e Nada Mais”, de Guilherme Arantes.

A Dejavu Sessions, enquanto isso, se preparava para subir no outro palco. A banda do curador do festival, Joabe Reis, apresentou um show cheio de groove, explorando o funk jazz com seu coletivo que funciona como uma reunião de ótimos músicos que se encontram para se divertir e, por tabela, divertir e levar boa música aos outros.
O encerramento do dia foi no Palco Artesão, com dois shows seguidos de duas das principais atrações do festival: Hamilton de Holanda Trio e Ellen Oléria. Mais uma vez, a sequência comprovou a variedade de estilos que o Jazz na Serra explorou. Hamilton, reconhecido internacionalmente, mostrou por que é uma das joias da música instrumental brasileira. Já Ellen, com apelo mais pop, conquistou o público com sua mistura de MPB e groove.
No domingo pela manhã, a sensação já era de saudade, mas ainda faltavam duas apresentações para encerrar. O Trio Corrente subiu ao palco debaixo de um céu ensolarado e mostrou uma banda em sintonia quase telepática. Piano, baixo e bateria em completo domínio técnico e criativo, tanto em solos quanto em conjunto, apresentaram um samba-jazz que honra a tradição e expande os limites do gênero.
Para fechar, nada melhor do que a iconografia clássica do jazz: as big bands. A Americana Jazz Big Band escancarou no nome e no repertório sua reverência à era de ouro do jazz, deixando a sensação de que o Jazz na Serra teve impacto positivo em todos os sentidos. Que seja apenas a terceira de muitas edições de um evento que merece se tornar parte do calendário local — e multiplicar-se pelo país.
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