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David Murray chega com moral à casa de John Coltrane



Na década de 1980, o jazz agonizava. Miles Davis, seu mais inovador e famoso representante, dava um longo hiato em sua carreira, tanto dos palcos quanto nas gravações. A efervescência do fusion e do jazz rock parecia ter se esgotado depois de uma febre que, se foi veículo para muita inovação, também abriu as portas para o que parecia ser uma moda de paleteria mexicana no gênero.


Apesar de tudo, dois eram os nomes que indicavam algum caminho. Um deles era o caminho para trás: o tradicionalista Wynton Marsalis, de quem o pianista Keith Jarrett chegou a dizer que “não tinha nenhuma voz ou presença, soava como um bom trompetista de ensino médio”. O outro era o saxofonista David Murray.


Em Murray, sobrava voz. Herdeiro da tradição do jazz de vanguarda e do free jazz das décadas de 1960 e 1970, sua carreira já havia começado em 1976 com o disco Flowers For Albert, em homenagem a Albert Ayler. Murray atuava no underground e deixou claro, desde o início, que queria levar o jazz adiante.


Após cerca de 100 discos gravados e quase 50 anos de atraso, David Murray finalmente está lançando seu primeiro disco por um selo que sempre poderia ter sido o seu: a Impulse Records, casa de John Coltrane, Alice Coltrane, Archie Shepp, Pharoah Sanders e tantos outros que, se olharam o jazz pelo retrovisor, foi sempre para dirigi-lo além.


Ao lado de seu quarteto, que conta com Marta Sanchez no piano, Luke Stewart no baixo e Russell Carter na bateria, o álbum Birdly Serenade traz oito composições próprias que sugerem um passeio pela prolífica carreira do saxofonista sem parecer um auto-tributo.


Três das músicas têm vocalistas convidadas. “Oiseau du Paradis” conta com o spoken word em francês de sua esposa, Francesca Cinelli, que fecha o disco em alto nível, começando em uma levada blues, mas literalmente voando no fraseado livre de Murray. Aqui é bom registrar: tudo que parece tradicional se perde no talento do músico de sempre surpreender. “Birdly Serenade” e “Song of the World (for Mixashawn Rozie)” trazem a linda voz de Ekep Nwelle cantando as letras de Francesca, ambas baladas que refletem um dilema que acompanhou durante muito tempo a percepção sobre músicos de free jazz: é preciso saber construir antes de desconstruir.


A desconstrução que remete aos anos iniciais de David Murray aparece principalmente na faixa “Black Bird’s Gonna Lite Up the Night”, que já se inicia fritando em um pesado improviso de quase 9 minutos. Menos fritada, mas não menos ousada, é “Capistrano Swallow”, onde o silêncio é mais explorado do que o barulho.


Vale destacar a banda que acompanha esse senhor que chega relevante e criativo aos 70 anos. Músicos na casa dos 30 aos 40, todos brilham e exploram a generosidade do mestre que, desde cedo, percebeu que o jazz precisa de renovação e deve ser colaborativo, e não competitivo.


Como um músico inquieto e que já explorou tantas vertentes dentro do gênero, David Murray mostra que chegou à Impulse — casa que Coltrane, um de seus ídolos, construiu — com moral para ter um retrato na parede.


Birdly Serenade

David Murray Quartet

Impulse Records

Nota 8


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