Como a Blue Note e a Bauhaus moldaram a cara do jazz
- Juliana Lopes
- 20 de mai.
- 6 min de leitura
Atualizado: há 3 dias

Ainda que vivamos num mundo digital com as músicas colocadas em streaming, sem necessidade da presença física do disco, as capas existem. Elas são a apresentação, a embalagem de uma história. Por alguns motivos, elas também tocam o coração. Elas são o rosto do artista, o retrato de uma sonoridade, o frame de uma narrativa que conclui um começo e fim. Congelam no tempo algumas escolhas feitas pelos artistas. O que conhecemos como “a cara do jazz” tem origem, nome, lugar e autorias.
A música sempre precisou de alguma “cara”. Muito antes da explosão dos videoclipes na década de 80 — que marcaram toda a época de ouro da MTV —, a música já tinha seu estilo, sua imagem, sua identidade. Os músicos se vestiam de uma forma específica. As locações de shows tinham um charme específico. A iluminação teatral do palco. De um estilo de música saem vários estilos visuais, um universo de um tipo de gosto.
As capas de vinil hoje são como livros. Para quem viveu na época do vinil, foi muito difícil passar para o CD porque o objeto diminuiu. As capas de discos sempre foram enormes. Ocupavam as estantes, as mãos, a sala. As capas de disco eram pequenos livros para a leitura, fotografias que não enjoávamos de olhar. Quadros que nos orgulhavam. Valiam o preço. E, quando apareceu o CD, foi esquisito. O discão virou um disquinho. A capa virou um encarte que mal encaixava na caixa de plástico. Pareceu mágico poder pular as faixas, ter um som mais “limpo” (tem quem goste) e ir direto para as músicas que gostávamos sem muitas ações mecânicas. Mas o som não era tão orgânico e lá se foi o objeto — grande, robusto, bem-acabado, com cartazes e letras das músicas. Mingou.
Hoje o objeto disco se diluiu em diversos canais. A música está em todos os lugares. Mas ainda precisamos da identidade visual — o Spotify sabe disso e capricha no design de sua interface e mostra as capas dos discos dos músicos, que muitas vezes são construídas por aplicativos de inteligência artificial. O “visual das músicas” estará em algum lugar desse território chamado identidade do autor. Ele ocupa muitas plataformas como a tela do streaming, as redes sociais, os sites, os banners de divulgação. As capas ainda contam algo?

Na era do jazz dos anos 1950, fazer uma capa de disco era uma operação artesanal, artística, com risco de se cortar, sujar e respirar substâncias químicas tóxicas. Talvez eu esteja exagerando, mas é sempre bom lembrar que os recursos estéticos de hoje vieram das referências criadas num mundo analógico. Um mundo de fotógrafos, pintores, ilustradores, desenhistas fazendo tudo demoradamente, e, literalmente, à mão.
A Blue Note, selo lendário, pioneiro em gravar jazz e lançar discos fundamentais de artistas de peso, foi também responsável por criar uma identidade visual desse estilo musical. É estranho imaginar que isso aconteceu há menos de 100 anos. Como seriam as obras de John Coltrane, Art Blakey, Herbie Hancock e muitos outros sem uma capa?
Foi nos anos 50, com o designer Reid Miles, que a gravadora deu essa guinada visual na cultura do jazz. Miles e seu parceiro criativo, o fotógrafo Francis Wolff — que era também um dos fundadores da Blue Note — formaram a dupla sinérgica que criou as capas fundamentais na história do jazz. Francis Wolff, sendo um dos produtores e donos da gravadora, tinha obviamente acesso a muitos momentos intimistas com os músicos. Nesses momentos, ele captava imagens espontâneas com um olhar de quem apreciava o jazz e tinha uma relação próxima com os músicos. A linguagem em preto e branco, as luzes pontuais e contrastantes, o foco certeiro e os enquadramentos vibrantes das imagens de Wolff eram transformados em um design seletivamente colorido, moderno, chique e cool por Reid Miles. Vejam se não é uma beleza:

O livro Blue Note: Album Cover Art conta essa história gráfica e visiva da gravadora que tem as mãos desses dois criativos. Podemos dizer que os anos 1950 foram os anos-chave para a criação dessa linguagem. Outros nomes passaram por lá, inclusive o de Andy Warhol, que aparece meio escondido e pouco hypado no livro. Precisei folhear muitas páginas para encontrar as capas ilustradas por Warhol, que, na época, era apenas mais um ilustrador, com traços num estilo inclusive bem diferente da pegada pop que ele desenvolveria anos depois.
Nos anos 1960, a Blue Note foi vendida para a Liberty Records, o gosto musical da época foi invadido pela avalanche do rock psicodélico, e aquela cena única e concentrada do jazz, construída com envolvimento, acabou minguando. Nesse período, o design das capas também vai caminhando para uma fotografia mais colorida, desfocada, natural.
Andy Warhol — antes de ser Andy Warhol — colaborou em capas da Blue Note
O estilo pop, colorido, vibrante e irônico do artista Andy Warhol ainda não era seu traço principal quando assinou capas de discos da Blue Note. O artista, inclusive, assinou como ilustrador ao lado de Reid Miles. Nas capas de Kenny Burrell, o traço de Warhol aparece mais sutil, fino, arrastado e delicado. Em The Congregation, de Johnny Griffin, as cores são um pouco mais vibrantes, mas nada que se aproxime das latas de tomate e da Marilyn Monroe que conhecemos da trajetória de Warhol.
As escolhas visuais seguiam um padrão: fotos em P&B ou pintadas em uma cor só, estilo monocromático. As cores, quando apareciam, eram poucas, primárias e usadas pontualmente. A tipografia, geralmente, em fontes serifadas. Pensem em tudo isso sem computador: as letras eram recortadas, coladas, pintadas, impressas. E, para a composição foto + palavras, era preciso primeiro que Francis Wolff fotografasse. A partir daí, com brigas muitas vezes no caminho, as capas eram criadas. Até hoje, é bem normal que diretores de arte tenham que negociar com o fotógrafo — nada novo sob o sol.
Talvez esse respiro entre uma letra e outra, o tempo de revelar a foto e o teste de cores provocasse um processo criativo mais lento, sólido e firme — mas isso é outra conversa.

Capa do disco The Congregation, do saxofonista Johnny Griffin
Nossa simpatia pelo modus operandi dos designers e a necessidade histórica de pontuar a origem desse tipo de linguagem nos arrastam mais ao passado, até a alemã Escola de Bauhaus, fundada no começo do século XX por arquitetos como Walter Gropius. A base da moda de letras geométricas, industriais e do uso de cores primárias em imagens minimalistas nasceu ali, nos anos 20.
O criativo Reid Miles, que criou as capas da Blue Note, passou anos sob a influência de um gosto moderníssimo, moldado pelos artistas da Bauhaus. Essa escola misturou artesãos, fotógrafos, atores e arquitetos numa mesma proposta educativa de colocar a arte no mercado. Devemos a ela a consagração da profissão de designer. Essa imagem gráfica moderna, minimalista, com cores primárias e atmosfera industrial criou o que chamamos até hoje de linguagem moderna. Convenhamos: 100 anos depois da Bauhaus, esse gosto industrial continua sendo cool.
Entrevista com a doutora em História Daniele Nastari
Miles Reid foi o designer lendário da Blue Note. Ele dava a cara para esse lifestyle do jazz, a arte da música. Como você vê essa transposição da música sendo interpretada pela gráfica?
Creio que seja algo natural, já que, há muitos séculos, melodia, harmonia e ritmo são conceitos presentes tanto no campo da música como no das artes plásticas. Na primeira metade do século XX, há exemplos marcantes dessa transposição no campo da pintura, como as séries de composições e improvisações elaboradas por Wassily Kandinsky a partir de seus diálogos com o compositor Arnold Schoenberg, e Broadway Boogie Woogie, uma das últimas telas de Piet Mondrian, que representa o ritmo frenético de Manhattan nos anos 1940 a partir da experiência do pintor holandês com os ritmos do Harlem ao se mudar para Nova York – e que o pianista Jason Moran classificou como "uma partitura de jazz".
Quais fatores fizeram com que a linguagem da escola de Bauhaus influenciasse as capas dos discos de jazz da Blue Note nos anos 40 e 50?
Isso se deve a alguns fatores. Ao meu ver, dois deles são mais importantes. O primeiro é a imigração de destacados professores da Bauhaus para os Estados Unidos na década de 1930, a partir do fechamento da escola pelos nazistas em 1933, e sua absorção por instituições de ensino de peso desse país. Walter Gropius, por exemplo, o idealizador e primeiro diretor da Bauhaus, se tornou professor da Universidade de Harvard, assim como seu pupilo Marcel Breuer. Josef Albers ensinou na Black Mountain College e depois se estabeleceu na Universidade de Yale; Mies van der Rohe se tornou o diretor da Escola de Arquitetura do Armour Institute of Technology (mais tarde o Illinois Institute of Technology) e o fotógrafo László Moholy-Nagy fundou a "Nova Bauhaus" em Chicago. Essa situação levou a uma difusão ampliada do legado da Bauhaus na América do Norte e à adoção de parte de seus métodos de ensino na formação de muitos estudantes americanos, influenciando profundamente o design e a arquitetura nos Estados Unidos na década de 1950. O segundo fator é o ressurgimento do funcionalismo no design e na arquitetura após a Segunda Guerra Mundial, como resposta às necessidades de reconstrução geradas por esse conflito, o que fez com que a produção da Bauhaus voltasse a ser muito significativa não só nos Estados Unidos, mas também na Europa.
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