top of page

A música perde Hélio Delmiro, o gênio silencioso da guitarra brasileira

Atualizado: 19 de jun.

Do samba ao jazz, dos palcos às lives de pregação: o músico que atravessou seis décadas com brilho raro e pouco reconhecimento foi fiel à sua arte até o fim


Foto: Milton Montenegro/ Reprodução (contracapa do álbum Emotiva, 1980)
Foto: Milton Montenegro/ Reprodução (contracapa do álbum Emotiva, 1980)

Hélio Delmiro sempre foi reconhecido como “um dos melhores guitarristas do Brasil” pela grande mídia, mesmo que este reconhecimento tenha ficado um tanto adormecido. E, de maneira irônica e triste, este reconhecimento despertou agora após a notícia de sua morte no dia 16 de junho de 2025, aos 78 anos. A Grande mídia voltou a falar sobre um dos maiores nomes da música brasileira...


Em seus extensos 65 anos de carreira — sim, o próprio Hélio admitia que, aos 13, já se apresentava com conjuntos de baile no Rio de Janeiro, sua cidade natal, e que, aos 14, tirou “brevê” na então recém-fundada Ordem dos Músicos — ele tocou e gravou com um contingente incontável de artistas da MPB: Milton Nascimento, Djavan, Nana Caymmi, Chico Buarque, Elis Regina, Tom Jobim, João Bosco, Fátima Guedes, Wagner Tiso, Cesar Camargo Mariano, Gonzaguinha, Carlos Lyra, Victor Assis Brasil, Marcos Valle, Edu Lobo, Ney Matogrosso, Leila Pinheiro, Simone, Gal Costa, João Donato, Wilson Simonal… Também produziu Elizeth Cardoso, Clara Nunes e João Nogueira. Sem contar suas gravações com Sarah Vaughan, no icônico álbum O Som Brasileiro de Sarah Vaughan (1978), e um duo histórico com o guitarrista Joe Pass, protagonizado no Festival de Jazz de São Paulo (será que existe algum registro em vídeo desse momento perdido por aí?).


No meio musical, Hélio Delmiro sempre foi uma sumidade. Lembro que um amigo da época de escola — que inclusive teve boas colocações em prêmios de violão erudito nos anos 1990 — se mudou de São Paulo para o Rio de Janeiro no começo daquela década simplesmente para beber da fonte mais límpida e pura do violão popular. Em outras palavras, para ter aulas com ninguém menos que Hélio Delmiro.


Hélio foi um dos maiores violonistas da história. Um completo autodidata, que sabia harmonizar e rearmonizar de forma única — seu trabalho já foi, inclusive, tema de pesquisas acadêmicas em programas de pós-graduação em música. Seus arranjos soariam “sofisticados” para um estudante avançado da Berklee, e “aveludados” para qualquer ouvinte mais atento. 


Hélio sempre transitou livremente pela música. Compôs choros como “Marceneiro Paulo”, que até hoje ganham versões de bambas do estilo. Escreveu e interpretou, primorosamente, uma série de peças para violão solo intitulada Emotiva. Em seus álbuns Emotiva e Chama (que inexplicavelmente ainda não estão nos streamings), incendiou o Brazilian Jazz quando esse nosso gênero improvisado vivia o auge, no começo dos anos 1980. E fez standards do mais puro jazz, como “Epistrophy”, de Thelonious Monk, e “Body and Soul”, de Johnny Green, soarem como temas autorais.


Há alguns anos, quando fui ter aulas com Mozart Mello — outro mestre da guitarra brasileira —, uma das primeiras lições foi que “até Hélio Delmiro, um improvisador virtuoso, tinha suas frases próprias no instrumento”. Portanto, eu também deveria desenvolver algumas e deixá-las guardadas debaixo da manga se quisesse improvisar com desenvoltura. Mas Hélio tinha um sotaque jazzístico que ele aprendeu ouvindo grandes orquestras e músicos como Oscar Peterson e Bill Evans. Impossível não se encantar com sua interpretação solo e ao vivo de “All the Things You Are”. Está no YouTube: seus dedos voam sobre o braço do violão em ritmo acelerado para buscar os mais lindos acordes e voicings — e dar uma cara nova a um dos temas mais gravados da história do jazz.


Emotiva (1980), Chama (1984), Romã (1991): três álbuns importantes da discografia de Hélio Delmiro
Emotiva (1980), Chama (1984), Romã (1991): três álbuns importantes da discografia de Hélio Delmiro

O bom gosto e a sabedoria musical de Hélio o tornaram uma referência máxima. Em uma de suas últimas lives transmitidas pelo Facebook (inclusive, a última aconteceu poucas horas antes de sua partida), chegou a dizer algumas vezes que nunca parou de estudar. Apesar de serem lives voltadas à pregação, já que Hélio era pastor evangélico, vira e mexe algum fã invadia a transmissão para tentar fazê-lo falar sobre música, a bendita música que o escolheu como uma de suas vozes mais poderosas. E lá estava o violão ao seu lado, em cima do sofá, exatamente como seu ídolo, Baden Powell, uma vez o aconselhou. Assim, ganharia intimidade mais rápido com o instrumento. “Com o violão fora do case, é mais fácil você pegá-lo para tocar, principalmente quando está apenas indo de um cômodo para outro”, justificou.


Pelo visto, Hélio nunca deixou de seguir à risca esse conselho.  Numa dessas lives na internet, que quase sempre não passavam de mais de 10 espectadores, pedi para que ele desse um breve sermão sobre a harmonia de “Compassos”, tema gravado ao vivo para o projeto Memória Brasileira: Violões, que foi lançado em CD em 1991 e que reuniu, além dele, performances irretocáveis de alguns dos maiores mestres do violão brasileiro – Heraldo do Monte, Egberto Gismonti, Raphael Rabello, Paulo Bellinati, Sebastião Tapajós e Paulinho Nogueira, entre outros. 


Só em 2004 é que Hélio lançaria, de fato, “Compassos”. Mais precisamente como faixa-título de um álbum que significava uma espécie de seu retorno às origens e à própria música. Depois de virar notícia nos jornais – havia sido preso brevemente por não pagar uma pensão alimentícia – “o maior guitarrista do Brasil” ressurgia com sua guitarra de timbre doce para interpretar clássicos da MPB (“Ponteio”, de Edu Lobo, e “O Morro Não Tem Vez”, de Tom Jobim), standards do jazz (“Round Midnight” e “My Favorite Things”), e quatro composições próprias. A grande novidade, no entanto, reservou para o final do disco, em que aparece soltando a voz em “Ilusão à Toa” (Johnny Alf), algo inédito em sua discografia.


No ano seguinte, tive a sorte de viajar a Tatuí, no interior de São Paulo, para cobrir um festival produzido pelo famoso conservatório musical daquela cidade. Hélio seria uma das atrações principais. Acompanhado por um time de primeira – Bruno Cardozo (teclados), Jorge Helder (baixo) e Jurim Moreira (bateria) –, o guitarrista mostrou que ainda estava em forma, tocando com os dedos, esbanjando sutileza e bom gosto no tal fraseado jazzístico e se mostrando totalmente à vontade em cima do palco. 


Horas antes do show, Hélio Delmiro aceitou bater um papo comigo no saguão do hotel onde estava hospedado – a conversa acabou virando uma longa entrevista para a revista Jazz+ (publicada originalmente em 2005 e reproduzida logo a seguir). Nela, o músico revive alguns de seus grandes momentos na carreira, e não esconde o ressentimento por ter seu nome gravado apenas como “Hélio” ou “Helinho” em parcerias significativas, incluindo um dos discos mais históricos da música brasileira. “O Hélio Delmiro se impôs quando passou a ser mico trocar meu nome, mas o que importa é que a grande dificuldade eu venci: ganhei o meu ídolo, o Baden Powell”, revelou.  


A real é que nem os maiores contratempos foram capazes de o fazer parar de tocar. Em 2024, ficou quase dois meses internado em São Paulo para tratar problemas renais. Do hospital, costumava postar vídeos bem humorados conversando com as enfermeiras, refletindo sobre a vida e recitando passagens bíblicas. Recuperou-se: em maio de 2025, lançou seu último álbum, Certas Coisas, em parceria com o cantor Augusto Martins. Ultimamente, morando em Brasília, fazia hemodiálise três vezes por semana, mas manteve a alegria de viver e tocar até os últimos momentos de vida.


No intervalo das lives e do tratamento, publicava vídeos interpretando louvores e outras canções populares, sempre com seu jeito particular e sofisticado de harmonizar. Cheguei a mandar mensagem e falar com ele ao telefone, perguntando se ainda dava aulas. A resposta foi afirmativa – por videoconferência. “Você vai aprender com o cara que gravou tudo na música brasileira”, disse sem parecer convencido – só estava sendo sincero e mostrando sua autoridade na música. De Jean Charnaux a Guinga, várias gerações de violonistas brasileiros puderam aprender com Hélio Delmiro. Eu, infelizmente, perdi o timing. Mas o que entristece mais é saber que uma estrela da música brasileira se vai – e talvez sem saber a verdadeira intensidade do seu brilho.       


Entrevista com Hélio Delmiro publicada na revista JAZZ+, em 2005.


Lembra da velha história de que brasileiro não sabe valorizar suas verdadeiras riquezas? Então, Hélio Delmiro é apenas mais um personagem esquecido desta fábula. Depois de atravessar inúmeras glórias e algumas desilusões em sua carreira, o músico retorna à ativa. Recentemente gravou Compassos, um trabalho em que mescla o jazz com a música brasileira, e vem participando de alguns festivais pelo país. Aqui, ele fala com exclusividade à Jazz + sobre sua formação musical, seus ídolos e algumas preocupações que envolvem todo o artista brasileiro. Saiba, a seguir, o que tem a dizer Hélio Delmiro.   


Você vem de uma família de músicos? Desde criança já sonhava em ser músico?


Minha família sempre gostou de música. Meu pai era pernambucano e minha mãe carioca, de Vila Isabel. Vila Isabel, bairro que tem uma tradição musical por causa de Noel Rosa. Minha mãe, que sempre cruzava com o Noel na rua, disse que já foi até paquerada por ele (rs). Eu nasci e fui criado ali. Ela tocava piano, e meu pai, que era militar, gostava de tocar violão. Sabia duas ou três valsas, estilo seresta. Portanto eu cresci num ambiente musical. Mas não pensava ainda em ser um profissional, nada disso. Aí meus pais se separaram, e a motivação continuou pelos meus irmãos mais velhos.


Como foi o início de seu aprendizado no violão?


Aos doze anos eu já tocava todas aquelas harmonias da bossa nova. Meu irmão, Carlinhos, que me ensinava. Ele passou a estudar piano e entrou para um conjunto de jovens chamado Clube do Guri, que se apresentava na recém inaugurada TV Tupi. Em casa ele não queria treinar sozinho, e me alugava, me ensinava os acordes no violão para fazermos um duo. Até então eu só sabia os acordes básicos, mas ele enchia o saco para eu aprender os dissonantes, aquelas coisas tortas. Quem ensinava aquilo a ele era o baixista do grupo Os Cariocas, o Luis Roberto. Logo fui tomando gosto e passei a me interessar pela coisa. O pessoal que ia lá em casa até falava: “esse garoto vai tocar muito”. Meus vizinhos, que frequentavam os bares da zona sul, comentavam com os outros músicos: “Tem um garoto lá do Meyer que vai arrebentar”. Logo no início o pessoal me elogiava bastante, dizia que eu ia ser um guitarrista do futuro.


Lembra da primeira música que você e seu irmão tocaram juntos?


“Corcovado”, “Um cantinho um violão...” Eu ficava olhando aquele Lá menor esquisito e não entendia nada. Fui aceitando aos poucos, porque você ligava o rádio e ouvia bossa nova: Agostinho dos Santos, Maysa e o próprio Roberto Carlos, que começou com a bossa nova.


O que você gostava de ouvir até então?


Eu ouvia Dalva de Oliveira, Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves. Não queria saber nada de bossa nova. E tocava “Cerejeira Rosa”, um bolero antigo. Aposto que você nunca ouviu. Era tudo acorde perfeito, não podia entortar, senão ficava feio. A Ângela Maria que cantava.


Como começou profissionalmente?


Certa vez um camarada me chamou para tocar em um baile. Eu tinha 13 anos, e os caras já eram todos profissionais. A gente pedia permissão para minha mãe, porque os bailes acabavam três, quatro horas da manhã: “Dona Carmelita, vou levar o Helinho para tocar lá no conjunto residencial”. Eles investiam em mim, só que eles tocavam aqueles standards americanos que eu ainda não conhecia. Em 1961, depois de um ano que foi fundada a Ordem dos Músicos, eu já tive que tirar minha carteira de músico, com 14 anos. Meu número é 7644, um dos primeiros, praticamente.


Como era ser um músico profissional naquela época no Rio de Janeiro?


No centro da cidade, tinha um lugar que se chamava Ponto dos Músicos, perto do teatro João Caetano. Todos ficavam bem bar em frente. Wilson da Neves, Edison Machado, ficávamos ali, conversando. De repente chegava um empresário à procura de um conjunto para tocar em um baile num clube, por exemplo. Armávamos o grupo na hora mesmo e íamos tocar. A partir disso, fui frequentando os bailes, ou melhor tocando nos bailes, porque eu não sei nem dançar. Na hora que era para dançar eu estava tocando (rs). Mas os músicos da zona norte eram mesmo os que tocavam a trabalho. O desafio era você tocar do túnel pra lá, na zona sul. Existiam reuniões entre os músicos de subúrbio, tocávamos jazz, mas ninguém aparecia. A vitrine era o Beco das Garrafas, e tinha que ter peito para ir à zona sul, porque lá só tinham estrelas. Passei a frequentar cada vez mais esses lugares, o que acabou sendo uma vitrine para mim.


Nessa época você não se interessou em saber o que existia em termos de guitarra pelo mundo? Não continuou a estudar música?


Não, em nenhum momento do meu aprendizado eu procurei saber o acontecia no mundo da guitarra. Uma vez um amigo me disse que eu tinha que estudar, que eu não podia desperdiçar meu talento. Então fui a uma escola lá mesmo no Meyer. Cheguei e o maestro, que era temperamental, me apresentou um método do Matteo Carcassi e um livro de solfejo. Eu levei aquilo para casa e comecei a estudar. Na aula seguinte, ele abanava o braço o tempo inteiro [contando o tempo], e solfejava as notas, perdidas ali no meio. Eu não entendia nada. Resultado: o cara ficou nervoso e me deu uma reguada na mão. E então disse: “Menino, pode comprar uma esteira para colocar lá no ponto dos músicos e ficar deitado, porque ninguém vai te chamar para tocar. Você não serve para isso”. Ele logo na primeira aula tentou me convencer de que eu era anti-musical. Eu era uma criança, claro que fiquei muito chateado e traumatizado com aquilo. Todo mundo dizia que eu era o máximo e vem o maestro e diz que eu não sou coisa nenhuma. Nunca mais estudei música, aprendi tudo sozinho. Depois quem me ensinou um macete de divisão rítmica foi um saxofonista chamado Clóvis, que é um baita músico.


E quando descobriu Wes Montgomery, por exemplo?


Eu tocava notas em oitavas diferentes e assobiava. Não sabia nem da existência de Wes Montgomery ou George Benson. Certa vez o Roberto Menescal me viu tocar e, assim que acabou o show me perguntou: “oh rapaz, onde você aprendeu a tocar desse jeito?” Eu respondi que tinha sido pelos métodos de violão erudito. Ele ficou espantado, porque tinha acabado de chegar dos Estados Unidos, onde viu o Wes Montgomery de perto. Ele não acreditava que eu nunca nem tinha ouvido falar esse nome. Fiquei curioso para saber quem era, e ele me disse: “o Wes toca com a mão, igual a você”. Acho que os únicos guitarristas que não usavam palheta eram o Charlie Christian, o Wes Montgomery e eu. Aí certa vez eu estava “garimpando” uns disquinhos de jazz numa loja lá do subúrbio, e vi um do Wes Montgomery. Já lembrei na hora: “foi o cara que o Menescal falou”. Foi o primeiro disco dele a sair no Brasil. Quando eu ouvi fiquei bobo. Que coisa maravilhosa! Mas a maneira de eu tocar está longe da dele. O cara é o Pelé, qualquer outro vem depois. Séculos passarão e ninguém irá superá-lo. Aquela espontaneidade no improviso eu nunca vi igual.


De onde vinham suas influências, desde então?


Vinham principalmente de saxofonistas e pianistas. Sempre ouvi muito Oscar Peterson e Bill Evans. Certa vez, eu acompanhando a Elis [Regina] na Alemanha, conheci um trombonista da orquestra sinfônica que sabia do meu trabalho. Disse que, quando eu tocava, ele ouvia um pianista, e não um guitarrista. É que sempre achei a guitarra um instrumento limitado. Já o piano tem uma abertura maior.


Como desenvolveu seu próprio estilo, tanto no violão quanto na guitarra?


Foi uma coisa que fui criando paralelamente, porque eu ouvia muito Baden Powell e também tocava os métodos do Carcassi de olhos fechados. Minha formação técnica é erudita. Como eu não tinha professor, eu colocava os discos do Baden na minha vitrola na rotação 16 e tirava nota por nota. Diminuía a velocidade para não escapar nada. Tirava tudo de ouvido e depois tocava junto com o disco. Essa foi a forma que eu encontrei para avaliar minha evolução técnica.  


Descobriu a improvisação pelo jazz?


Não, a improvisação veio pela bossa nova. Eu tocava tudo de ouvido, em cima daquelas harmonias mesmo. Nem existiam os estudos de análise harmônica, não havia coisas disponíveis como se tem hoje. Era na criação mesmo, de tanto ouvir. Mas tudo me parecia explicável. Sempre entendi a música pelo ouvir.


O que você ouvia de jazz?


Ouvia tudo o que pintava, mas quase nada de guitarra. Gostava de John Coltrane, Art Blakey, Quincy Jones, e das orquestras, como a de Henry Mancini. Como a qualidade não era muito boa, deixei de ouvir Stan Kenton, por exemplo. Fui descobrir que ele era importante depois.


Você acredita ser criador de um estilo da guitarra no Brasil?


Eu acho que eu criei uma identidade para a guitarra. Nenhum guitarrista se destacava, e eu consegui levar a guitarra para o palco de um teatro. Passou a existir “show de um guitarrista”. Já dividi até concertos com guitarristas americanos e fui aprovado por eles.


Atualmente  tem algum guitarrista brasileiro que você admira?


Acho que todos estes guitarristas brasileiros que estão na cena tocando sério são bons. Mas tem um cara que me agrada muito que é o Lula Galvão. Gosto muito deste camarada.


De onde veio a idéia de formar o grupo Fórmula 7?


Foi tocando em bailes que me deu um amadurecimento para eu formar o Fórmula 7, que já tinha uma visão comercial. Os músicos do Fórmula 7 queriam tocar jazz. Mas montamos um repertório específico, para caracterizar aquilo como um show nosso mesmo.


Você já trabalhou ao lado de grandes nomes da música, como Tom Jobim, Sarah Vaughan, César Camargo Mariano... Entre estes e outros músicos, considera algum que seja fora do comum?


É difícil responder, porque eu nunca toquei com gente ruim. Mas um cara realmente fora do comum, um sujeito imprevisto era o Luiz Eça. Ele não era fantástico apenas tocando jazz, era bom em tudo. Tocava bossa nova, jazz, mas gostava de tocar jazz em ritmo de samba e era um músico erudito, estudava muito.  Certa vez ele participou de um concurso musical e de repente, não se importando em manter a postura da peça, saiu “entortando a mão esquerda” [referindo-se às variações harmônicas que Eça executava]. Já fiz um duo também com o Joe Pass em um festival de jazz em São Paulo. Na verdade era para tocar eu, o Heraldo do Monte, o Joe Pass e o Barney Kessel juntos. Mas o Joe Pass se atrasou e chegou em cima da hora. E o Barney Kessel tinha dito que só tocaria se houvesse ensaio. Enfim, acabou que tocamos eu e o Joe Pass somente. Fizemos “Corcovado” e um outro tema de jazz. Dizem até que isso até me rendeu um ranking na revista DownBeat. Fiquei entre os cinco melhores do mundo, não sei direito.


Quais os maiores obstáculos que superou na carreira?


No início, uma pessoa diferenciada tem que vencer diversos obstáculos. Há muito preconceito, inveja, panelas, entendeu? Por exemplo, nesse disco Elis e Tom, eu já era um cara conhecido, mas mesmo assim colocaram na contra capa, de sacanagem, “Hélio”, “Helinho”, dependendo da faixa. O  Hélio Delmiro se impôs quando passou a ser mico trocar meu nome. Mas até aí é um processo que leva tempo e você tem que saber superar tudo isso. Não tem projeto maior e nem talento maior que não tenha que vencer esses obstáculos. Porque quem não está com nada passa despercebido. Mas a grande dificuldade eu venci, ganhei o meu ídolo, o Baden Powell.


Como foi essa história?


Quando garoto, cheguei a ver o Baden algumas vezes no teatro. Ele era genial, conseguia ser um compositor tão bom quanto era instrumentista. Mas ele foi para a França e perdi o contato, até porque ele era um cara que não dava acesso a ninguém. Em 1973 viajei para França e participei de um mesmo festival que o Baden. Um amigo nosso em comum tentou me apresentá-lo, mas fiquei com a mão abanando. Saí injuriado. Em 1986, eu me converti a evangélico, virei pastor. Em 1989 eu estava pregando, e no final do culto um homem fala que o irmão dele era motorista particular de um músico famoso, que estava com problemas de saúde. Então ele me pediu para fazer uma oração na casa deste músico. No caminho eu perguntei: “escuta, quem é ele?”. E ele me respondeu: “toca violão, igual ao senhor, acho que se chama seu Baden”. Cara, foi um desafio. Mas Jesus morreu na cruz por nós, perdoou os pecados do mundo. A gente tem que ter esse espírito também, senão é mentira. Eu não podia nutrir nenhum sentimento em relação ao Baden. Cheguei lá e ainda tomei outra alfinetada, mas aí meu coração já estava diferente. Eu sabia que aquilo era uma luta espiritual. Alguns anos depois, fui fazer compras no Carrefour, no Rio mesmo.  Quando eu olho no fim do corredor, quem vem com o carrinho? O Baden. Ao cruzar com ele eu disse: “Oi Baden, sou o Hélio Delmiro, músico também”. Ele me olhou por cima dos óculos e já imaginei que fosse me engolir vivo. Mas pelo contrário, me deu um abraço: “Delmiro, te procurei essa semana inteira”. Eu gelei, fiquei arrepiado, entendi menos ainda. Ele explicou que também tinha se convertido e queria me convidar para o batismo dele. Para mim foi um milagre, um presente de Deus. Isso aconteceu uns quatro anos antes de ele morrer. Depois planejamos até fazer um disco. O Baden passou a frequentar o grupo de oração em casa. Quando acabava o culto, a gente ficava tocando violão. Isso foi uma benção de Deus, porque o Baden sempre foi inacessível para mim.


É difícil viver de música hoje no Brasil?


Eu acho que o problema não está com os músicos. O som que a gente faz hoje é o que a gente fazia naquela época, é natural. Inclusive “Witchcraft”, do auge da bossa nova – do tempo em que a avenida Atlântica era uma pista só e a areia era branquinha, não tinha nem o aterro em Copacabana – está no meu novo disco. Só que hoje há um desinteresse por parte das gravadoras e da própria mídia. E com isso a gente vai perdendo a motivação. Existe uma reciclagem de ídolos, de mitos, de coisas que são extra-arte, e que criam o amontoamento, a concentração de pessoas. Mas são coisas passageiras, porque só sobram realmente aqueles que têm algo a dizer, os que sabem ser profissionais da música. Mesmo assim, tem que haver mais condições, o músico tem que ser mais prestigiado aqui no Brasil. É isso que está faltando. Se tivesse existido a manutenção por parte daquelas pessoas que foram a fonte, talvez as coisas fossem diferentes hoje: se você não tem um João Gilberto omisso, um Tom Jobim que viaja para os Estados Unidos, prova o gostinho de um Carnegie Hall e fica mal acostumado... Lá se mora bem, você ganha grana, mas ficar aqui é o problema. Hoje a valorização e o reconhecimento profissional do músico brasileiro são difíceis.

Comentários


bottom of page